quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - VI

(parte V)

A partir de 1963, Niomar assumiu o Correio da Manhã que, em suas mãos, viveu sua fase mais gloriosa e, também, uma lenta agonia que terminaria com o desaparecimento de um dos mais tradicionais e independentes jornais cariocas. À sua frente, Niomar, uma mulher de elite, desenvolveu uma atuação política de confronto direto com o regime pós-64, alinhando seu jornal de tradição liberal com setores da esquerda nacional em nome do respeito à democracia e à legalidade. Uma decisão que lhe deu enorme visibilidade na cena nacional e prestígio junto aos setores progressistas da sociedade, mas pela qual pagou caro. Ao longo da década, o Correio sofreu um processo de perseguição permanente. Foi objeto de um estrangulamento financeiro capitaneado pelo governo militar, que não apenas deixou de anunciar mas, também, criou dificuldades para que a iniciativa privada, tradicionalmente dependente de financiamento estatal para seu desenvolvimento no Brasil, anunciasse no jornal. Em 1969 foi presa e processada, tornada persona non grata entre os poderosos do regime. Abriu mão de suas funções no MAM, temendo que sua presença atraísse animosidades contra os interesses da instituição que fundara e ajudara a manter por quase trinta anos. Absolvida das acusações, mas estigmatizada no país, decidiu arrendar o jornal, sufocado em dívidas, e autoexilar-se em Paris.
Em 8 de julho de 1978, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi praticamente destruído por um incêndio de grandes proporções. O fogo começou numa das salas do bloco Exposição e rapidamente espalhou-se, consumindo obras de Magritte, Dali, Klee, Matisse, Miró, Pollock, Rivera, Segall, Portinari, entre muitos outros e grande parte da produção de Rafael Torres Garcia, de quem o MAM abrigava no momento, uma exposição antológica. Niomar soube do sinistro através de um telefonema da diretora-executiva do museu na ocasião, Heloísa Lustosa, narrado por ela a Jefferson Andrade:

– Niomar, o museu pegou fogo.
– Meu Deus, Heloísa. Quando vocês vão parar de brigar?
– Niomar, o museu incendiou-se! Está todo destruído pelas chamas. Está quase tudo reduzido a chamas![1]

O choque foi tremendo. Niomar voltou em alguns poucos dias ao Brasil, pois desejava ver pessoalmente os estragos causados pelo fogo naquele que havia sido o projeto de sua vida por três décadas. Na ocasião, contou à repórter Any Bourrier, correspondente brasileira de O Globo em Paris, que se realizava, naquele momento, seu mais terrível e freqüente pesadelo. Lembrou que perdera a conta do número de vezes que havia ligado para o Brasil, expressando sua preocupação com a segurança do prédio e do acervo. Em seu depoimento à repórter, afirmou estar sob efeito de tranqüilizantes, desde que recebera a notícia. Chamou o museu de “meu terceiro filho” – anos antes, perdera o “segundo”, o Correio da Manhã que, passando por intensa crise financeira, deixara de circular em 1974. Mas Niomar não se sentia ainda vencida: na mesma matéria, falou, também, em reconstrução, retomada imediata das atividades, luta por apoio nacional e internacional para a tarefa. Desejava recomeçar, quase do zero, o projeto de dotar o Rio de Janeiro de um Museu de Arte Moderna de nível internacional.
Mas Niomar não era mais a jovem mulher que, nos anos 50, lutara incansavelmente pelo projeto do museu. Perdera seu prestígio junto aos representantes do Estado e setores da iniciativa privada que, temerosos das conseqüências das reformas de base sobre seus privilégios, apoiaram o golpe. A par disso, encontrava-se fragilizada por uma série de perdas afetivas e materiais. Primeiro, a morte de Paulo, no começo da década de 60. Depois, o processo de declínio financeiro do Correio da Manhã, durante toda a década anterior, culminando com um contrato de arrendamento em 1974, o qual se mostrou desastroso: os arrendatários deixaram de cumprir obrigações trabalhistas e, para saldá-las, Niomar teve de desfazer-se de significativa parte do patrimônio legado a ela pelo marido. Agora, em 1978, estava perdendo o Museu de Arte Moderna, o seu museu, e parte significativa do rico acervo que ajudara a reunir. Encontrava-se, naquele momento, numa posição frágil, delicada.
Em 20 de abril 1985, um segundo incêndio de grandes proporções marcou sua vida. Desta vez, o alvo foi o luxuoso apartamento da Avenida Ruy Barbosa. O fogo, provocado por um curto-circuito no aparelho elétrico antimofo de um dos armários, espalhou-se rapidamente pelo apartamento. Serviram-lhe de combustível as divisórias de madeira, mapotecas lotadas de gravuras preciosas e estantes coalhadas de livros e documentos. O luxuoso apartamento converteu-se rapidamente em cinza, ferro retorcido e fuligem. Niomar perdeu praticamente todo seu arquivo pessoal – documentos, cartas, fotos. Parte dos arquivos do Correio que ainda estava sob sua guarda – anos antes, ela doara parte deste ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro – também foi destruída. Sobretudo, Niomar perdeu uma coleção de arte que reunira ao longo de mais de trinta anos, de alto valor econômico e valor artístico incalculável.
Niomar encontrava-se, como de costume, em Paris. Há tempos, passava mais tempo na capital francesa que no Brasil, para onde vinha uma vez por ano. Dias depois de receber a horrível notícia, desembarcou no Rio de Janeiro. Encontrou apenas escombros onde um dia fora um belíssimo apartamento de dois andares – o segundo já fora vendido anos antes, por ocasião da liquidação do Correio. As fotos tiradas durante o primeiro exame que fez do que restou do local, estampadas no dia seguinte nos jornais cariocas, são contundentes. Particularmente uma, publicada na edição de 27 de abril de 1985 do Jornal do Brasil, na qual uma Niomar envelhecida, abatida, vestida com simplicidade extrema, posa, tendo à sua frente alguns poucos objetos negros de fuligem retirados do incêndio.
 Na cobertura de O Globo, 26 de abril de 1985, um repórter anônimo descreve aos leitores a cena de Niomar guiando os jornalistas pelos escombros, informando-lhes a disposição dos ambientes, os locais onde, dias antes, estavam os quadros e esculturas destruídos. Composição em Branco e Preto, pequeno óleo de Mondrian, avaliado em dois milhões de dólares, foi a pior perda. Um grande painel de Marc Rothko, estimado em um milhão de dólares, também desapareceu e, com ele, foram-se telas de Picasso, Paul Klee, Matisse, Mabe, Chagall, Portinari, entre muitos outros; esculturas de Lassau, Lygia Clark, Mario Cravo, Calder; livros e discos raros; séries completas de gravuras de Volpi; todo o rico mobiliário e peças de arte decorativa.
As apólices de seguro que protegiam as obras mais valiosas estavam vencidas.
Niomar começou a reformar o apartamento, mas, tão logo terminou de cimentar as paredes destruídas, vendeu-o, num rompante.
Após o incêndio do apartamento do Flamengo, Mauro passou a auxiliar a avó na tarefa de recuperação dos objetos restauráveis. Desenvolveu-se entre os dois uma relação de grande afeto e cumplicidade. Aos vinte e um anos, tornou-se sua companhia mais freqüente, seu braço-direito e confidente. Por isso, preserva parte significativa da memória de Niomar:

“Eu acabei conhecendo um pouco a história da Niomar – e não mais da minha avó – em virtude dela mesma ir me contando. No mês e meio que ficamos juntos em Paris, em 1986, muitas vezes a gente ficava a noite inteira acordados, ela me contando as histórias dela.”

Dos três netos, fora sempre o mais próximo da avó. Seus dois irmãos mais velhos, acredita, acompanharam o pai nos altos e baixos de sua relação com Niomar. Mauro era mais jovem e, ao contrário de Antônio Moniz Neto, havia sido poupado do convívio com a mão forte de Niomar quando esta detinha mais poder. Por sua vez, Niomar encontrou no neto mais moço um apoio afetivo num momento da vida em que já se encontrava privada de muito do que fizera dela uma proeminente figura pública. O segundo marido, Paulo, morrera. O Correio já acabara, e com ele fora-se a imensa influência política que teve ao longo das décadas de 50 e 60. Por motivos políticos, afastara-se da direção do Museu de Arte Moderna, o qual, em 1975, pegou fogo, destruindo muito daquilo por que Niomar lutara ao longo da vida. O passar dos anos apagava seus encantos físicos. Por fim, um segundo incêndio, desta vez em seu apartamento na Avenida Rui Barbosa, em 1985, destruiu a valiosíssima coleção de arte que reunira ao longo da vida. Mauro entrou em sua vida num momento em que os encantos da vida pública e privada ofereciam pouca concorrência ao amor maternal. Seu depoimento é, por isso, ao mesmo tempo precioso e comovente.

“Na verdade, eu adoro falar da minha avó. Eu penso muito nela, foi uma pessoa fundamental na minha vida. (...) Eu tive uma relação com ela que eu digo que é de avó e neto e, ao mesmo tempo, ela foi me moldando a ela (...).Nessa fase em que ela não podia mais ficar sozinha, ela tinha uma pessoa que ficava com ela e, quando essa pessoa não estava, quem ficava com ela era eu. Não podia ser outra pessoa, porque ela não aceitava mais ninguém. E, às vezes, ela falava "Ah, que chato para você ficar aqui comigo...". Mas a verdade é que nunca foi chato para mim ficar com ela. Toda vez que eu me lembro dela ou que eu estou com ela eu me sinto uma pessoa melhor. Acho que isso traduz o que eu sinto por ela.”[2]

Mauro lembra que, vaidosa, nunca gostou que a chamassem de avó. Preferiam que a chamassem pelo nome. Não suportava, também, ser tratada por “senhora”. E era econômica nas demonstrações de afeto.

“Ela não era uma pessoa que você tivesse vontade de abraçar, chamar de vovó, dar um monte de beijinhos... Niomar não inspirava isso, de maneira nenhuma. E, embora fosse baixinha, impunha muito respeito (risos).”[3]

Possessiva, hostilizava as namoradas de Mauro. O neto conta que, uma vez, passando uma temporada com a avó em Paris, ocorreu de estar de passagem pela cidade uma namorada sua. Niomar ficou tremendamente incomodada com a presença da moça como, também, recusou-se a recebê-la. O próprio Mauro acredita que Niomar transferiu para ele os sentimentos maternais não realizados na juventude com Antônio, afastado de seu convívio fisicamente, por decisão judicial; e emocionalmente, pelo duro julgamento social da época reservado a uma mulher que havia abandonado o marido para viver com outro homem. Ele conta, por exemplo, que a avó, hoje, freqüentemente o confunde com o pai.

“Ela sempre me mostrava uma foto de meu pai junto com o Oswaldinho, filho do Oswaldo Aranha, numa festa, vestido como uma dupla caipira, quando eles ainda moravam na Avenida Atlântica, e dizia: “Olha seu pai aqui”. Depois, quando começou o processo de perda de lucidez, ela apontava para a fotografia e dizia: "Olha você aqui". Eu falava: "Não sou eu, vó, esse é seu filho, eu sou seu neto. Não quero ser promovido". Mas toda vez ela repetia a mesma coisa. Ela fez a transferência. [Como se eu fosse] o filho que ela não criou, e que não abandonou. Por algum motivo, nunca abandonou.”[4]
Por que abandonaria, se àquela altura a concorrência dos encantos do mundo exterior encontrava-se, já, tão reduzida, e era agora perfeitamente conciliável com o afeto da família?
Mauro responde:

“Com adolescente, é preciso ter um pouco de paciência. E Niomar não era uma pessoa paciente. Mas comigo, ela sempre teve toda a paciência. Ela era muito acostumada a abrir mão das pessoas. Mas de mim, ela nunca abriu, nem quando eu falava coisas que a aborreciam.”[5]

Mauro acredita que o incêndio foi um golpe tremendo para Niomar, numa idade delicada. Na sua opinião, depois dele, a avó começou a apresentar alterações de comportamento que, com o passar dos anos, iriam se agravando e derivando em perda de lucidez. Niomar tem, hoje, oitenta e quatro anos. Vive num apart-hotel no Rio de Janeiro, permanentemente assistida por acompanhantes e enfermeiras. Segundo informou Antônio, o diagnóstico foi mal de Alzheimer. Apresenta alguns momentos de relativa lucidez mas, em geral, mostra intensa confusão mental. Sua saúde está estável, embora conviva com muitas limitações físicas. Niomar vive*, mas há muito deixou de ser Niomar.




[1]ANDRADE, Jefferson e SILVEIRA, Joel. Um jornal assassinado - a última batalha do Correio da Manhã. Op. cit. (p. 57)
[2]Entrevista com Mauro Moniz Sodré (02/05/2000).
[3]Id. Ibidem.
[4] Id. Ibidem.
[5] Id. Ibidem.

Fim do Capítulo III da dissertação de mestrado de Flávia Rocha Bessone Corrêa: DE COADJUVANTES A PROTAGONISTAS: A trajetória de três mulheres que trocaram os salões de sociedade pelo controle de grandes jornais brasileiros nas décadas de 50 e 60, apresentada ao Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em História em 2001.


*Nota do Blog: Niomar morreu em 2003.

Um comentário:

  1. Sou pesquisadora sobre as memórias femininas da construção de Brasília. Gostaria de conversar com algum parente da D. Niomar. Por favor, entre em contato: taniafontenele@gmail.com

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