domingo, 26 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - III

(Continuação da parte II)

Paulo Bittencourt era uma figura fascinante. Filho de Edmundo e Amália Bittencourt, fora enviado a Cambridge, Inglaterra, ao completar dezessete anos, e lá permaneceu por um ano, como estudante. De volta ao Brasil, bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, mas desde muito jovem começou a trabalhar no Correio da Manhã, do qual se tornou redator-chefe. Durante todo o governo Arthur Bernardes, fizera-lhe oposição cerrada pelo Correio, tendo, por isso, cumprido um ano de detenção na Ilha Rasa. Em 1929, o pai lhe passara o comando e propriedade do jornal e, desde então, Paulo fizera valer como nunca antes aquilo que gostava de chamar de “a ortografia da casa”: um conjunto de princípios que norteavam a atuação do jornal, contendo desde regras de linguagem propriamente ditas até – e principalmente – uma postura de insubordinação permanente diante dos poderosos da vez. Era um homem viajado, erudito, rico, bem relacionado. Vivia entre Rio, Nova York e Europa, mas orgulhava-se de tocar ganzá na casa de Pixinguinha. Sempre acompanhado de inseparáveis copo de uísque e cachimbo, estava à frente de um dos mais populares jornais da capital e, naquela posição, era amado e admirado por seus subordinados; temido por seus inimigos.
O interesse foi imediato, de parte a parte. Niomar ganhou o posto de articulista, e passou a visitar regularmente a redação do Correio. Lá, era recebida com especial atenção pelo diretor do jornal, que com freqüência a acompanhava de volta à casa. Paulo contava, na ocasião, quarenta e quatro anos, e tomou-se de encantos pelo temperamento forte e inteligência aguda da moça pequenina e esguia, vinte e um anos mais jovem. Ambos eram casados. Sua mulher era Sylvia de Arruda Botelho Bittencourt, jornalista, seria a primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra – embora, segundo divulgam as más línguas, não tenha arredado o pé da capital italiana durante sua estada na Europa conflagrada, em 1944[1]. Sylvia e Paulo tinham uma filha, Sybil.
Hoje, quem passa pelo largo do Boticário, belíssimo conjunto arquitetônico carioca situado no bairro Cosme Velho, próximo à entrada do Túnel Rebouças, vê gravados sobre um prisma retangular de cantaria versos de autoria de uma certa Majoy celebrando a beleza do local. Majoy nada mais era que o pseudônimo com que Sylvia Bittencourt assinava sua coluna de temas variados no jornal de Paulo Bittencourt, proprietário da maioria das casas em estilo neocolonial construídas com material de demolição anos antes pelo pai num local que outrora constituíra parte da chácara do Barão da Glória.
Paulo desquitou-se de Sylvia Bittencourt, um processo que envolveu a partilha do valioso patrimônio do casal. Coube a Sylvia as casas do Cosme Velho. Paulo ficou com uma imensa propriedade em Copacabana – todo o quarteirão compreendido entre a Avenida Atlântica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Avenida Francisco Otaviano, coalhado de dezenas de casas à beira-mar, incluindo o valiosíssimo terreno onde se erguia o antigo Cassino Atlântico. Quanto ao prédio do Correio, foi destinado aos netos do casal, filhos de Sybil, em regime de usufruto para o jornal. Paulo continuou, porém, detendo o controle acionário das duas empresas que compunham o Correio: a Correio da Manhã S/A e a Corman Publicidade S/A.
Quanto a Niomar, o fim de seu casamento era, agora, questão de tempo. No final da década de 30, Hélio Moniz Sodré Pereira tomou uma decisão desastrosa: trouxe da Bahia, para morar com ele e Niomar no apartamento da Avenida Atlântica, seu pai, Jerônimo, e sua mãe, Cora. Na presença dos sogros, Niomar tornou-se ainda mais impaciente e a relação, que já se mantinha de forma precária havia tempos, deteriorou-se rapidamente. Em 1940 – o ano da morte de Moniz Sodré – o casal por fim separou-se. Hélio e seus pais se mudaram, deixando Niomar e o filho Antônio, então com seis anos, no apartamento de Copacabana. Não se pode afirmar exatamente quando, ou em que circunstâncias, a relação entre Niomar e Paulo tornou-se pública. Seja como for, Hélio ficou enfurecido. Muitos anos depois, ainda não se conformara totalmente com o fim do casamento, o sentimento de humilhação pública a que Niomar o tinha exposto. Seguiu-se à separação uma feroz batalha judicial pela guarda de Antônio, que se arrastou pelos dois anos seguintes, com acusações mútuas.
Ao final, Niomar perdeu o processo. Num tempo em que não havia, ainda, divórcio no país, e que as mulheres separadas sofriam sob pesado estigma, Niomar era não mais, aos olhos da Justiça e da sociedade, que uma adúltera. Aos oito anos, Antônio passou a morar com o pai e os avós. Foi praticamente criado por Cora, a avó paterna. Passou a visitar periodicamente a mãe, seguindo estritamente os dias e horários de visita determinados pela Justiça.
Antônio conta que o desquite litigioso, no início da década de 40, trinta e cinco anos antes da legalização do divórcio no país, foi uma experiência traumática. É fato que o estatuto da mulher passava, naquele período, por profunda transformação, em todo o mundo. Contudo, e por isso mesmo, Niomar viveu num tempo de violenta reação aos novos padrões de relacionamento entre os gêneros. As publicações destinadas ao público feminino em sua maioria veiculavam um modelo de mulher feito de abnegação, paciência e compreensão. Recomendavam-se, nelas, a manutenção dos laços conjugais sob quaisquer circunstâncias, e a total subordinação afetiva às conveniências sociais, em nome do sagrado dever de educar filhos saudáveis e bem ajustados.[2] Quanto à legislação cível editada no país no mesmo 1916 em que nascera Niomar, igualava a mulher em termos de capacidade jurídica aos pródigos, menores de idade e índios[3], dando aos maridos a prerrogativa de administrar os bens do casal e da mulher, bem como de tomar a iniciativa de qualquer ato legal referente à família. Foi exatamente com base nessa legislação que Niomar perdera a guarda do filho pequeno para o ex-marido, após decidir reconstruir sua vida afetiva.

(continua)



[1]SANDRONI, Cícero. Cosme Velho. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Rioarte, 1999. (p. 65-66)
[2]Sobre o tema ver BASSANEZI, Carla. Revistas femininas e o ideal de felicidade conjugal (1945-1964). In: VÁRIOS. Caderno Pagu - nº 1. Campinas: IFCH/Unicamp, 1993. Ver também da autora Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher (1945-1964). São Paulo: USP, dissertação de mestrado, 1992.
[3]MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil - vol. 3. São Paulo: Cia. das Letras, 1998 (p. 375).

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