sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - I

A tarefa de resgatar Niomar dos pés de página da história enfrenta a dificuldade adicional de não se saber por onde começar. Priorizar a sua determinação pela construção do MAM, o enfrentamento da Ditadura pelo Correio da Manhã ou sua trajetória de mulher à frente do seu tempo? Como contar esta história? Na pesquisa bibliográfica que estamos começando a realizar, temos encontrado, aqui e ali, fragmentos, fatos pitorescos e relatos adjetivados, que permitem que nos aproximemos de determinados ângulos de Niomar. Dentre o material já consultado, nos chamou a atenção a Dissertação de Flávia Bessone, "DE COADJUVANTES A PROTAGONISTAS: A trajetória de três mulheres que trocaram os salões de sociedade pelo controle de grandes jornais brasileiros nas décadas de 50 e 60". Este texto apresenta os contornos de uma Niomar que não se define apenas por suas realizações, mas como uma pessoa inteira. Com a devida autorização da autora, vamos publicar (em partes) o Capítulo III  desta dissertação e, assim, ir ajudando os leitores do blog a entender porque escolhemos Niomar.

NIOMAR: A LIBERDADE A QUALQUER PREÇO
 Por: Flávia Rocha Bessone Corrêa

Banho de camisola, não!
Niomar era apenas uma menina, mas já não aceitava autoridade facilmente, menos ainda quando a ordem lhe parecia tola, ou irracional. Por isso, sua temporada no internato do Colégio Sacré Couer de Jésus, instituição aristocrática destinada à formação de meninas de elite no Rio de Janeiro, foi curta. De nada lhe valeu, naquele educandário católico e severo, a influência do pai, o ilustre deputado baiano Antônio Moniz Sodré. Tampouco contou a seu favor a origem da falecida mãe, Maria de Teive Argollo, descendente de D. Rodrigo Argollo, nobre castelhano que aportou na Bahia em 1549 na comitiva de Tomé de Souza, primeiro governador da província. As regras eram claras e extensivas a todas as alunas; quem não se adaptasse, que procurasse outra instituição. Sendo assim, Niomar foi convidada a se retirar da escola.
Ao ser expulsa do Sacré Couer, a futura proprietária do Correio da Manhã inaugurava a coleção de atos de insubordinação que, ao longo da vida, foi ampliando, a qual lhe valeu uma imagem de rebeldia e independência que levaria ao paroxismo quando permitiu que seu jornal se engajasse abertamente numa feroz campanha contra as arbitrariedades cometidas no país, atraindo para si a belicosidade de um regime discricionário que se esforçava por manter uma aparência democrática para uso externo.
O episódio do banho foi narrado pela própria Niomar aos jornalistas Jefferson Andrade e Joel Silveira, que o reproduziram no livro Um jornal assassinado – a última batalha do Correio da Manhã . Anos antes, ela o havia contado a seu neto mais novo, Mauro, com quem desenvolveu, na velhice, uma relação de confiança absoluta. Em que medida a narrativa corresponde à realidade, é difícil saber, pois, a julgar pela quantidade de episódios destacando a bravura da biografada contidos no livro de que, como conta Joel Silveira, ela própria foi a fonte principal, Niomar não apenas não se preocupava em desfazer a imagem insubmissa como, também, procurava sublinhá-la o mais possível. Oitenta anos se passaram, e o velho Colégio Sacré Coeur, no Alto da Boa Vista, há muito fechou suas portas. Sobrou o prédio imponente, obra do arquiteto Morales de Los Rios, de pé direito alto, corredores intermináveis e piso revestido de ladrilho hidráulico desbotado pelo tempo.
É fato, porém, que Niomar esteve pouco tempo no Sacré Coeur. Ao que tudo indica, Moniz Sodré teve de conformar-se com o gênio forte da filha e matriculou-a no Colégio Sion do Rio de Janeiro, igualmente católico e destinado a moças de famílias abastadas. Ali, pelo menos o problema do banho estava resolvido. O colégio era um externato; desde que aparecesse impecavelmente limpa e uniformizada, cada menina que fizesse como bem entendesse sua família no momento da higiene diária. Contudo, Niomar também terminou abandonando o Sion antes de graduar-se: em 1929, decidiu seguir o pai na Bahia, durante sua campanha para deputado federal. Ou bem o pai era um liberal, conforme ela própria relataria a Jefferson Andrade, ou bem não tinha forças para resistir ao temperamento forte da filha.
Na ocasião, Moniz Sodré foi eleito, e, embora tenha perdido o mandato um ano depois, por ocasião da Revolução de 30, esta última vitória nas urnas foi o corolário de uma carreira política marcada pelo êxito. Descendente de titulares da nobreza brasileira, Antônio era um dos muitos filhos de Egas Carlos Moniz Sodré de Aragão, médico, professor catedrático pela Faculdade de Medicina da Bahia e, também, proprietário de um engenho de açúcar que, com o fim da escravidão, desapareceu. Não herdou do pai o gosto pela Medicina ou pelas atividades rurais. Estudou Direito, e fez uma brilhante carreira como advogado criminalista, catedrático e jurista. Mas a política era sua paixão. Em 1909, exerceu pela primeira vez um cargo eletivo, como deputado estadual na Bahia. Três anos depois, eleito deputado federal e já casado com Maria de Teive Argollo, mudou-se para o Rio de Janeiro. Exerceu o cargo por dois mandatos consecutivos, seguidos de um terceiro, como senador, a partir de 1920.
Em meados de 1916, já instalado com a mulher e duas filhas, Ofélia e Sônia, no aristocrático bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, chegou à sua casa a notícia da morte do sogro, Miguel de Teive Argollo, engenheiro responsável pela construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas. A mulher, Maria, estava novamente grávida. A família deslocou-se imediatamente para Salvador. Pouco tempo depois, Niomar nascia na terra de seus pais, um pouco por acaso. Sua mãe ainda deu à luz uma quarta menina, Nígia, mas não viveria tempo suficiente para ver as filhas crescerem. Em 1922, morreu, deixando órfãs quatro filhas menores. Coube à mais velha, Ofélia, então com apenas quinze anos, a tarefa de auxiliar o pai na educação das irmãs. Privada da mãe, Niomar aproximou-se de Moniz Sodré, a quem amava e admirava.
(continua)

2 comentários:

  1. Essa gente que desde sempre - mesmo que por instinto - sabe questionar ordens "tolas e irracionais" me encanta. Talvez vem daí minha admiração pela Asterisca... hehehe!
    Muito bom o texto da Flávia... já deixa a gente querendo mais.
    E tu pode votar da forma que quiser... porque sei que o fazes com convicção. E isso faz toda a diferença! Beijos, queridona!

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