sábado, 25 de agosto de 2012

Biografia de Niomar por Flávia Bessone - II


Até que veio a adolescência, propícia às manifestações de rebeldia mesmo entre personalidades mais pacíficas e estáveis. Apesar da formação em instituições de ensino católicas, Niomar não se deixara envolver pelo universo da religião. Circundada pela rica biblioteca do pai, encantou-se, antes, pelas belas letras. Começou a escrever contos, crônicas, poesias e peças teatrais. Uma biografia sua do poeta D’Annunzio chegou mesmo a ser publicada no período, no Rio de Janeiro, como parte de uma coleção sobre personalidades mundiais. Ao mesmo tempo, começou a interessar-se por artes plásticas, desenvolvendo especial predileção por Van Gogh e Gauguin. Moniz Sodré orgulhava-se dos pendores artísticos e do temperamento determinado da filha. Em 1932, sobreveio a ruptura.
Aos quinze anos, Niomar apaixonou-se pelo primo Hélio Moniz Sodré Pereira, filho de uma irmã de seu pai, Cora Moniz Sodré Pereira, e de Jerônimo Sodré Pereira. O namoro foi mantido em segredo pelo casal pois, ao que parece, Moniz Sodré tinha planos diferentes para a filha. Um dia, o pai os flagrou juntos na sala de estar da casa da família e, aborrecido, expulsou o rapaz de casa. Em depoimento para o livro de Jefferson Andrade, Niomar conta que, naquele momento, tomou uma decisão que mudaria para sempre sua vida: fugiu  de casa, indo instalar-se num hotel do centro da cidade do Rio de Janeiro. Mandou, então, avisar ao pai que não retornaria à casa sem antes obter a autorização para que se realizasse o casamento. Estabeleceu-se o impasse: só em setembro Niomar atingiria a idade mínima prevista pela legislação brasileira para o casamento – dezesseis anos. O pai mandou que esperasse. Niomar não voltou para casa paterna: foi viver com a irmã Sônia, já casada, até que, em 30 de setembro daquele ano, casou-se com o primo Hélio, e transferiu-se para Salvador.
O casamento consangüíneo é uma prática freqüentemente encontrada em famílias de elite no passado colonial brasileiro. Entendido o matrimônio como peça fundamental de um sistema de alianças em cuja gênese está a falta de capilaridade das instituições do Estado brasileiro de então e a conseqüente hipertrofia do poder local centrado na figura do patriarca, era de se esperar que, num quadro de escassez de boas  famílias – aquelas às quais unir-se traduzir-se-ia em vantagens políticas, sociais e econômicas –, algumas poucas famílias optassem por ligar-se entre si por meio de casamentos. E que, uma vez reunidas, reafirmassem suas alianças por meio de sucessivas uniões consangüíneas. Assim, mesmo desaparecidas as circunstâncias que o engendraram, o casamento entre primos e primas, tios e sobrinhas, rejeitados em muitas culturas – inclusive na contemporânea, sob argumentos geneticistas – tornaram-se plenamente aceitos, em especial na elite nordestina.
O casamento entre primos foi uma constante na família de Niomar. Além da própria ter-se casado com um primo irmão, sua irmã mais velha, Ofélia, uniu-se com Edmundo Moniz, filho do ex-governador da Bahia Antônio Moniz Ferrão de Aragão, por sua vez primo de Antônio Moniz Sodré de Aragão, pai da noiva. Sônia, a segunda, casara-se com o irmão de Edmundo, Heitor Moniz. Por fim, poucos anos depois, a irmã mais nova, Nígia, casou-se com Evandro Correia de Menezes, também primo. Ao longo das décadas, os sobrenomes Moniz, Barreto, Aragão, Ferrão, Castelo Branco, Pereira, Sodré, Argolo e Menezes, entre outros, combinaram-se e recombinaram-se sucessivamente. Niomar, que fora registrada de Argolo Moniz, tornara-se, por matrimônio, Moniz Sodré Pereira. O Sodré que se tornaria parte integrante do nome com que Niomar apresentou-se à sociedade anos depois viera-lhe não pela via paterna, mas pelo matrimônio.[1]
Restabelecida a relação com o pai, Niomar voltou de Salvador com o marido. Sendo ambos ainda muito jovens, foram viver na casa de Moniz Sodré, no elegante bairro de Laranjeiras. Lá, Niomar teve seu único filho, batizado com o nome do avô: Antônio Moniz Sodré Neto. Hélio formou-se em Direito e ingressou no departamento jurídico do Banco da Prefeitura, o qual acabaria por chefiar. Mais tarde, por incumbência da instituição, atuou como interventor no jornal carioca A Vanguarda, um grande devedor do Banco, que, a despeito dos esforços de saneamento financeiro, acabou abrindo falência. Já maduro, ingressou por concurso na magistratura, e aposentou-se como juiz. Segundo depoimento do filho Antônio, Hélio era um sujeito pacato, com pendores intelectuais, cuja maior ambição era a de que a vida transcorresse serenamente em sua casa, em meio à família, e os livros.
No começo da década de 30, Niomar, Hélio e o pequeno Antônio mudaram-se para um apartamento na Avenida Atlântica, de frente para o mar de Copacabana. Aparentemente, tudo corria para Niomar de acordo com o ideal de felicidade preconizado na época para mulheres de classe média: era casada, tinha uma marido estável e próspero e um filho saudável. Contudo, ela estava insatisfeita. Queria da vida mais que uma existência mediana, devotada ao lar e à família. Ela mesma contaria ao neto, Mauro, que, em 1937, cansada de estar em casa, havia procurado o ministro da Justiça, José Carlos Macedo Soares, em busca de emprego. O ministro achou graça, e admitiu-a como sua auxiliar informal nos cinco meses em que esteve à frente da pasta. Dois anos depois, decidida a ingressar na imprensa, pediu ao pai que lhe apresentasse a Orlando Dantas, proprietário do Diário de Notícias, um jornal que desfrutava, na época, de grande prestígio, devido à sua heróica resistência durante o Estado Novo, que agonizava. Moniz Sodré, porém, não o conhecia; em compensação, mantinha boas relações com a família Bittencourt, proprietária do Correio da Manhã. Durante o governo Hermes da Fonseca, defendera Edmundo Bittencourt, fundador do jornal, das acusações que sobre ele pesavam. Chegara mesmo a atuar como diretor interino da folha carioca, enquanto o amigo esteve preso. Moniz Sodré procurou o filho do fundador do Correio, Paulo Bittencourt, que, desde 1929 dirigia o jornal, levando consigo Niomar e um exemplar do livro sobre o poeta D’Annunzio.




[1]Sobre casamentos consangüíneos ver DEL PRIORE, Mary. A família no Brasil colonial. Cidade: Moderna, 1999. Ver também FALCI, Miridan Knox Falci. Mulheres do sertão Nordestino. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Unesp, 1997 (p. 258)

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